13.4.10

a ordem da mosca {uma short story de cris castro}

Substrato

Com uma toalha de rosto meio encharcada, coisa de minutos travava um épico embate com aquele emperrado registro do chuveiro o agora desencardido Estevan. No banheiro evaporava todo o cloro que a rede de abastecimento não tinha o menor pudor de adicionar como encargo extra às contas domiciliares. Tateava à esmo, cerrando os olhos escarlates pela reação alérgica, procurando aquela utilitária e fedida toalhinha que sabe-se lá para que fins escusos já havia sido utilizada. Desembaça absortamente o espelho na patética contemplação das partículas do quase mofado pano que um dia havia chamado de toalha, que pungentemente aderiam à superfície sebosa daquele vidro sujo. Estava quase gostando de ficar ali meditando acerca das relações eletro-valentes em uma insólita e complexa contemplação dos desgarrados felpos de toalha bolorenta. E foi neste contexto enevoado que um estridente e irritante chamado telefônico rompia toda lírica encapsulada por aquele azulejo pegajoso:-...Eu disse que já vai,caralho!! Praguejava tentando sem sucesso envolver os quadris secos com a ínfima toalha.-Alô, é Estevan?Perguntava uma radiofônica voz que parecia vinda do além devido à um chiado crônico na ligação que a relapsa prestadora não dava conta de sanar.-Fala cof..irmãozinho!Cof..Tossia Estevan.-E aeh, malandro? Aqui é Andrew.Estou ligando, pois tem gente que não dá mais sinal de vida!-Dá um tempo aeh, brother.Cof..A fumaceira do chuveiro era tanta que .. Cof,cof... Eu parecia estar era em Auschwitz.-O quê que têm witz? A ligação tá muito ruim,velho! Replicava a radiofônica voz do além.- Mas escuta,cara...em relação à aquele “assunto”, alguma novidade?- Não se trata de qualquer novidade. O que eu tenho para nós é uma solução quase milagrosa, he,he... Não se conteve o recém astuto Estevan, que para ornamentar a evasiva aura de seu “engenhoso plano”, tratou de sugerir que não falassem, por precaução, ao telefone.-Oito horas no Tamoio’s está bom? Quem chegar por último paga a ceva!-Certo... No Tamoio’s. Abraço.

Escaços feixes de claridade difusa embrenham-se intermitantemente nas lacunas que compunham a copa daquela outrora jovem figueira e que certa feita servira de testemunha à um ilícito e fruitivo abandono à atividade corpórea entre um casal de namorados que tinha por sigilo, assíduos e impetuosos afagos após o culto da Igreja de Confissão Pentecostal do Sexto Distrito. Com efeito, era esse mesmo recôncavo que agora, perdido de cupim, acolhia o retorno ao ninho da brava bem-te-vi que realizando solenes evoluções antes do pouso, trazia consigo um suculento e nutritivo verme para a ceia familiar. Pois bem, esta era a Praça do Peixoto: uma nostálgica coleção de seringueiras,vespeiros, merda de cachorro e onde incorriam-se torpezas de toda ordem à exemplo dos preservativos e seringas que espalhavam-se entre os arbustos. Desarmonicamente orquestrava-se naquelas adjacências o dissonante coro de camelôs, ambulantes e fiscais de fim-de-linha- " Délcio Borja,via americana sai às nove!"..."barato o oliú!”..." Vai uma lixinha pros pé, vizinha?”..." Vamo liberar a roleta subindo bem àcima!” Quase em fronte ao ponto do Rápida Marina estava o Tamoio’s, boteco que não deixava-se sucumbir, nem mesmo com as atrozes investidas da Secretaria da Saúde.-Mas rapaz, você sofre de distúrbio de fusos horários... A observação exalava hálito de cinzeiro e de onde mais poderia vir senão da paciência mórbida de Andy? Ao que replicava com insolência o suorento e atrazado Estevan:-Gin Tônica? Vem cá, isso não é bebida de viado?-Há uma hora atrás estava gelada. Vai um gole “aeh”?-Digamos assim, que a pontualidade não seja algo de exatamente invejáv... e mais uma vez o pitoresco re-tratamento era desarticulado,”rham”... se permitir o encejo, diante dos portentosos atributos de Anabel, a garçonete,que apoteoticamente surgira de trás da cortina de vime. Ah... Anabel, ou como preferia naquele suspiro monótono quase sussurrar-...’nabel.

Oviposição


Recém chegada de longas férias, leia-se manutenção, a saudosa jukebox estava finalmente voltando à ativa. Em meio à murmúrios incognoscíveis, sim e porquê só dessa forma é que se pode definir a compacta e indecifrável massa sonora que sucede nas efervecentes plenárias de botequim,”clisht!” fazia o crédito que dava ignição à cada tema escolhido. Algum bêbado que tivera a felicidade de num número de magia, apanhar do bolso seu último níquel, que descrentes, os demais gambás à muito julgavam perdido, após embaraçosas tentativas o introduz na velha máquina.-”Homens hic... de pouca fé” pensou. -Peraeh Andy, tá ouvindo essa? Ma’rapá, não é a... -É. “I wanna fuck myself” de G.G. Alin. -Ma’não?! -Sim. -...pra jogar uma pá de cau em cima do defunto! Lá vem ela... -Tá falando da música? -Não, da musa. Desapontado, explicava Estevan à Andy Que não raramente, causava-lhe a impressão de tratar-se de um ser renunciado à assuntos de natureza tal.



Eclosão


Como ia dizendo...ao perceber o conteúdo que repousava naquele recepiente que nem de longe parecia Vidro, o ardiloso Estevan não poderia deixar em branco sem soltar uma das suas - Gin tônica? Vem cá,isso não é bebida de viado? E já ia explicando qualquer coisa sobre seu problema com horários, momento que algum agente externo atravanca-lhe o raciocínio -’nabel. Suspira. -Senhores! Cumprimenta a jovem. -”Se não é a casual e dissimulada voz de mulher” pensa Andrew. -Senhorita. Responde o último. Ao que prossegue a fitá-la, como o fazem os lobos quando estão famintos,por sua vez, Estevan. Passam-se longos vinte segundos aproximadamente, em deslumbrado silêncio que a garota chega a franzir a testa preferindo, em virtude do volume de pedidos à anotar, despertá-lo do transe: - E nosso amigo Estevan, aceita um café? - Libanês. Num meio sorriso, sucinto a sustentar o olhar de predador, completa Estevan que por sinal venderia até a alma em troca do deleite com aquele “rabo-de-saia”.’Nabel executa uma manobra de 180º levando consigo o bloquinho de notas, sua locomoção era por assim dizer, de uma manhosa displicência, o que em absoluto desabonava sua plasticidade, pois mesmo feia ela era bonita. E o então lobo que acompanhava as fantásticas ondulações daquele nada modesto quadril num balançar contemplativo, observa como o faz o enólogo: -Saliência íngreme em arrojo e modelagem. -Que que tem “agem”? Pergunta o colega que, digamos assim, não compartilhava exatamente da mesma opinião. Ao que anciava o prosseguir do assunto “a”.


População

Cara, antes de mais nada quero que saibas que nunca soube o que é ter um irmão... então Deus me deu você.- a essas alturas, enigmático, evangeliza o precavido Estevan ao que perplexo, prontamente lhe indaga o interlocutor.- Sei, agora percebe-se que de ateu marxista te tornastes fervoroso carola!- Te antena rapaz, a partir de então essa é nossa senha para iniciar-mos o assunto.-...Mpf! Já estava prestes a me sentir lisonjeado.- Que isso velho, confio em você, ora bolas!- Tomarei como um galanteio, mas prossiga!- Numa cautela que seria obsessiva se não fosse necessária, nosso articulador Estevan introduzia o amigo, nos quarenta minutos que seguiram, a luz de uma tese sobre uma suposta conspiração envolvendo grandes laboratórios, gente do mais alto escalão do governo, ligada ao serviço de inteligência.- Tenho uma cópia do relatório descrevendo suas movimentações excusas.-acrescentou ainda finalizando, e dispôs sobre a mesa um fac-simile de um artigo publicado em forma de dossiê, algo como uma resenha bio-química.O Paxil compõe uma categoria antidepressiva ligada aos chamados ISRS, inibidores seletivos de recaptacao de serotonina, na qual o mais célebre representante é o Prozac. Sua atuação consiste em elevar o teor do neurotransmissor serotonina nas sinapses, acionando o impulso nervoso de célula para célula. Estima-se um déficit de aproximadamente 10% dos neurotransmissores que se perdem no processo, sendo 90% reabsorvidos. A fim de estimular a transferência dos sinais, os ISRS mantém a serotonina no espaço entre os neurônios por mais tempo.
A prescrição dos ISRS para criancas e adolescentes foi proíbida na Gra-Bretanha e em demais países de colonização saxônica. Sua distribuição ainda é permitida embora trazendo em suas embalagens as advertências para o risco do consumo entre os menores de 18 anos, e o alerta deverá ser ampliado após a publicação dos resultados da pesquisa, que aponta uma provável conexão com o aumento do comportamento suicida entre adultos e jovens.-Sei, mas exatamente que trunfo você acredita esconder, uma vez que o próprio ministério da saúde deve estar instaurando um devido estudo acerca da intervenção medicamentosa?-Pergunta Andrew, desacreditado ao avaliar a vocação evasiva do artigo.- Pois sim. Não consta como novidade que o Serviço de Vigilância Sanitária encontra-se acometido por uma ingerência em seu sistema de inspeção. Frouxo desse jeito, fica suscetível de compactuar com a pesquisa subsidiada pelos próprios fabricantes e como não costumo dar ponto sem nó, obtive essa semana acesso as somas registradas pelas pesquisas empreendidas nos demais países que o medicamento era comercializado e, acredite, onze entre os 3.455 pacientes que tomavam Paxil tentaram suicídio.- Não me admira! Num pais que detem 20% da biodversidade do planeta e a própria legislação dificulta o acesso de seus pesquisadores aos recursos naturais...Mas me diga Estevan maroto: -Você pretende ganhar o prêmio Pulitzer atrás das grades por hakear informações sigilosas?- Em absoluto, meu caro. Não é a fama que me instiga, se não justamente o contrário... Sou apenas um informata latino-americano sem dinheiro no banco, se é que você me entende?- Você está montando um banco com essas informações?- Somente o suficiente para financiar nosso plano de conquistar o mundo, he, he, he. Diga, quando se sente nervoso o que tem tomado?- Chá de camomila, cara. Chá de camomila. E você?- Chivas. ... A la salud!- A la salud! O poente costumava recolher-se cedo no sexto distrito, porém naquela tarde Andrew tivera a impressão que o sol rebelara-se com Deus, feito criança que insiste em ficar até mais tarde brincando no parque.

Afecção


Estevan surge desconfigurado junto ao jornaleiro que proclamava aos quatro ventos mais um sanguinolento manjar à base de vísceras para o sensacionalista apetite da população:-Manchete do dia! Acidente de trânsito envolvendo calouros da A.S.L.O High School mata seis! O sol ainda cândido ascende lentamente à vidraça de um prédio em monótona escalada, patéticos transeuntes dirigiam-se apressadamente ao encontro de suas mórbidas rotinas diárias enquanto Andy reconstituía imagens de garotos com luvas de borracha e lençóis feito capa preparando-se para enfrentar o mais temido dos vilões, ninguém menos que Seu Marcílio do armazém.-Extra!Extra!Rodovia da Morte! Acentuava o vendedor do Clarim.- Seis estudantes morrem em acidente. Estranhamente sentira que tempo e espaço já não poderiam lhe fornecer as mesmas referências em órbita das quais gravitava o seu “Eu”, sequer sentia suas pernas que respondiam com voluntariedade à um emocional imperativo:-Fuja Andy! Ao contrário, uma onda de frio percorria-lhe os ossos diante de sua sombria inércia; tremia o diário untado com a gelada sudorese das mãos.Temerosos, os olhos deslisavam bêbados de horror sobre aquelas catastróficas linhas e foi somente após uma longa e inútil reflexão que lhe escapara por uma fresta dos dentes antes serrados, a entreaberta constatação:-Estevan tá morto. Contudo, indiferente à tragédia que se desenhava naquela manhã, havia um certo atrevimento naquele sol que insistia em aquecer seu rosto para sempre gelado pela fúria da perda.Crianças lambonas teimavam com seus pais disputando vorazmente o direito à um último algodão-doce que restara da escassa féria de um pobre diabo naquela tarde nublada de agosto, que entre um pigarro e uma tragada no atávico cigarro de palha setenciava:-argudão doce!Numa cadência não menos que tediosa.-barato argudão!Floristas desarmavam suas tendas,e num ruidoso lamento ensacavam as coroas excedentes à espera de algum familiar retardatário ainda aturdido por mais um ente que partira.Num assovio franzino, o vento precipitava-se ante o melancólico ranger de galhos das imensas araucárias, lembrando floreios de esgrima como no saudoso clássico Simbad, o Marujo._ Já estamos fechando. Faltam apenas quinze minutos! Advertia o porteiro.-Não se demore,filho. Não hospedamos visitantes, he,he... Aposto que não apreciaria passar a noite em companhia de corujas e dos...Mas Andy isolara apenas, na fala de praxe daquele velho rabujento, a crucial informação:-...apenas quinze minutos! Então era isso, você que ainda nem elaborou a perda de um quase irmão, possui míseros quinze minutos para encontrar o endereço, prestar-lhe apressadas homenagens e retornar, concluía à si mesmo Andrew Josh Sorrento.Vivia na morte do amigo o epíteto da sua. À esta incorruptível desidentificação com tudo que é efêmero e conhecido, havia um universo rendendo a mais prostrada reverência. “A morte possui seu próprio milagre”, ouvira certa feita algum intelectualóide de boteco proferir entre taças de vinho dos mais ordinários e “trintonas” com os cabelos sumariamente oxigenados. O ponto era que aos olhos do mundo, sua dor parecia estar razoavelmente equalizada, considerando os reincidentes traços sombrios que compunham toda a personalidade melancólica: ao longo da vida,Andy já havia frequentado todo o métier psicanalítico que a relidade financeira de sua casa pudesse comportar e pelo menos oficialmente, nunca recebera desses profissionais um diagnóstico que satisfisesse alguma classificação patológica específica. Características comportamentais que não atendiam necessariamente à um código delimitado, mas que entretanto apresentavam um genuíno poder de embaraçar as opiniões de cisudos especialistas, garantiam-lhe profundamente o mais refinado sentimento de inadequação social. Haveria, por consequência, em algum confim da dor estética, meio de emitir ao mundo um sintoma dessa abstrata agonia que sua impressão de realidade encontrava-se imersa? Cada passo sobre as vielas emlameadas à procura do mármore que deveria conter a singela legenda “ Estevan Maroto Jr. 1981-2003, Saudade dos que te amam” redesenhava um cortejo íntimo escoltado pela discreta romaria de pensamentos conflitantes. Enevoadas imagens pertencentes à iniciação púbere comum à infância de ambos e que em dado momento mesclavam-se à um vertiginoso e compulsório sentimento de religiosidade desbotavam-se em matizes sépias de memória, oxidação e ruína. Uma encabulada garoa cedia espaço à pesados pingos de chuva que estouravam na superfície frágil de seu rosto sem que contudo expressasse sequer uma mínima contração facial, uma sútil indiferença exterior que contracenava com sua desintegração psíquica anunciava algo de enfandonho:“O Homem-mosca está de volta.”

Patogenia

- Última chamada! Chiraz, linha 307 sai às sete. Alardeava o irredutível comissário de embarque da “Expresso Zayandé”. Sua voz conferia-lhe uma verossímel austeridade profissional, quase uma intimação, não o fosse a tenra idade. Sim, o garoto iraniano expunha uma certa vaidade pertinente à afirmação dos jovens através do trabalho e que, sem exagero afirmar, em farsi, assumia uma superlativa aura de nostalgia.Fato que em seus autos, a massa falida Expresso Zayandé, não possuía licença para trafegar fora dos limites de Isfahan, em ocorrência de sua situação jurídica. Tampouco para investir um vintém que fosse na renovação de sua frota - com efeito, era a maior e mais obsoleta caravana de latas-velhas da cidade.Pois sim, foi exatamente encabulada e sacolejante a conquistar os mais austeros buracos da viela poeirenta que partira o último carro da intrépida viação.O estilo bricabraque hegemônico nas aromatizadas e hipnóticas “chaykunés”, casas de chás mais elegantes do planeta, sempre dispostas à poesia secular, aos românticos narguilés, com seus saborosos aromas, instaladas sobre as decrépitas pontes de pedra do antigo império persa, eram inadvertidamente transversalizadas pela artéria obstruída e eloqüente do tráfego semanal, o que constituía em si, um paradoxo.A despeito do feriado da Áurea Condolência, descobriam-se uma romaria estática através da qual desfilavam buraqueiras corruptas e imperfeições afins daquele acidente paisagístico que em um emirado longínquo haverá de chamar-se pavimento. Restava a nuvem ciano que os escapamentos expeliam, confundindo-se com a poeira da rua e garantindo a débeis pombos um enfileiramento deveras desajeitado no parapeito do centenário para dali a pouco, provavelmente aflitos por ar puro dispersarem-se em gorjeio mútuo. Andrew farejava fumo suave, orvalho jovem com sabor de maçã, menta ou laranja, embalado pelo som das águas sob a ponte Chuby. Taciturno a perambular o labirinto de vielas estreitas que ligam os trinta e três aros da ponte Si-o-Sé, todos invariavelmente cênicos, era naquela noite constelada aportado por voluptuosas formas de néon violeta nas torres de templo e vento pontuadas por estradas bucólicas e fragrâncias que indicavam os sabores milenares do império que ainda iam à mesa.- “Saudoso velhaco!”. Era a sentença que lhe pairava a idéia ao avistar a silhueta familiar acomodada próximo à janelinha forrada de tapete, lânguida que não se opunha nem por um instante em conjugar seu “ghalian”, com uma robusta esfiha recém sacada do misterioso pacote pardo, num movimento sagaz que dizia respeito aqueles destemidos cowboys do velho oeste, dir-se-ia um John Wayne.Ali estava Nado Rosso, a quem Andrew capturava com olhar atônito e que desta vez, conduzia a cena como um foco de uma velha super-oito. Uma super-oito imaginária e alheia ao tempo, que internalizava a paisagem rococó, recriando-a em pequenas tomadas daquele estranho mundo.À sua maneira, dissimulava Andy, um andar objetivo e apanhou-se a rir da aura de detetive. Voltar a si, mudar de estratégia, concordou. Lhe ocorreu então, que se não estivesse ali para ter com Rosso, seria provavelmente um observador de pássaros daqueles melancólicos programas de tv da Transtel Produtora. Diminui a marcha como o fazem os curiosos nas adjacências dos acidentes de trânsito.Havia um desses bartenders. O do tipo bartender, e também havia, é verdade, um desafino uníssono de risadas descartáveis alheias aquele epopéico reencontro. A voz de Nado Rosso não é a rigor uma voz imponente, mas talvez ressonasse como uma vibração sutilmente enérgica para além do desembestar da rouquidão:- Chay! Concordava com o cara de avental, o que fazia o tipo bartender, que aproximava-se de sua mesa oferecendo a bebida quente acompanhada por cristais de açúcar para serem postos a boca e derretidos pelo chá, em uma manobra atávica, a desalojar um desdenhoso bocejo.A lei seca iraniana, longe de ser apenas uma instituição é por excelência, um discurso. – Chivas! Proferiu a esmo Nado Rosso, orientando com inconfundível gesto de dois dedos. Por um instante desejou não transitar com proficiência em farsi, para que o falatório massivo viesse a transubstanciar-se num único fluído sonoro despojado de sua função original – comunicar. Ocorreu então, que em uma solubilidade meteórica, Rosso é arrancado violentamente de sua voluntária introspecção do abstrato ao aproximar de uma sombra viva, oriunda de um passado próximo.- “...Ah! ambição ocidental! Só não é menor que a avidez desta mosca à espreitar meus cubos de açúcar. Aludiu, em tom irônico ( que lhe prestara de faixada para o súbito desconcerto gerado pelo visitante) e prosseguiu sem desviar o olhar jurídico sobre o jovem:- Codinome Homem-Mosca. Ao que instantaneamente replicou o rapaz. – permita-me observar-lhe, mas não há aqui em Isfahan, um único fiapo de prova que evidencie jus ao emprego de formalidades!- É verdade. Avaliou o velho e desta vez sua voz assumia um tom indulgente. Sendo assim, será um prazer que se apresse junto à nossa casa, a fim de saborear algumas de nossas especialidades acompanhadas por bom fumo. Sem hesitar, o recém chegado assume assento sobre a esteira, buscando sucessivamente um alojar-se confortável e num segundo momento, à revelia do semblante costumeiramente sisudo que o tempo moldara no intuito de conferir-lhe escudo ante a aridez do mundo, assinalara um pacto de trégua sob efeito da penumbra que adentrava mansamente o ressinto e assumia enfim, deliberado ar de amistosidade:- Percebe-se, e isso é espantoso, Nado, que para um técnico em explosivos te tornastes um proeminente ecônomo.- É um empreendimento modesto, em que a grandiosidade repousa na intenção de prover aconchego às almas cansadas e refúgio a ocidentais insatisfeitos com sua comida-lixo, digo fast-foods. Refletia Rosso, emprestando ainda que ínfimo, um tom de ironia as suas considerações e acrescenta ainda:- Sabe Andy, o fim da vida é o fim da vida até mesmo para um assassino saudita e merece ser assistido pelo cajado da dignidade. No entanto, não esperava a pronta réplica do jovem :- Deixa de conversa mole seu porco! É evidente que não escolheu o Irã apenas para ser o recôncavo de sua aposentadoria.-Não? Pois prossiga. Orientou o velho sem despojar-se da atitude serena.- Ou seria porque a vizinha Teerã é a capital mundial do MDMA e esta espelunca a faixada perfeita para lavar seu faturamento sujo? Retaliou o sisudo jovem.- Ah... o MDMA líquido. Leia-se, a matéria prima para amortecer o mal-estar da civilização densamente povoada pelos amantes do liberalismo e da democracia. Pondera Rosso que no tocante à acusação recente presta-se a mais uma rajada de humor negro : - Francamente meu caro confráter, acaso pensou o patrício que o Hezzbolah é nosso único artigo exportação?- Deixa ver. Após anos operando em conjunto, parece coerente que a milícia ofereça guarida à suas transações. Conclui o jovem a equação que lhe empresta a impressão de um inelutável sentido e prosseguiu – Mesmo um organismo de caráter fatricida depende, por assim dizer, de uma estrutura financeira que o sustente e nesse caso, o percentual exigido não é nada modesto.- Pra um delator profissional, sentencia o velho, te saístes um analista político não menos que promissor. Outrossim, temo precipitar-lhe que o ponto é que a milícia fundamentalista é o povo. São estudantes, advogados, são os operários e se por um lado estão camuflados em áreas civis, o “Consorte das Rapinas” não apresenta menor constrangimento em considerá-los alvo. Afinal, são os “Caras do Mal”.- É tudo muito bonito. Não o fosse o fato de cooptarem o imaginário público como campo de exploração ideológica. É o que chamamos de engenharia de consentimento. Numa próxima etapa não encontram resistência para que a população lhes sirva de escudo, basta que sigam seus sentimentos. Ao que o velho lançava mão de sua última e letal ogiva:- Parece que a apropriação indevida não é monopólio apenas do Governo Imperialista, não é mesmo meu duplo-cidadão? Acometido de um potencial ímpar para o sarcasmo, pontua o velho Rosso: - Pois falemos de sentimentos. Seriam acaso, compostos por uma substância comum à que tão friamente soubestes suprimir quando da delação de seu afeto compatriota? Como se chamava mesmo? Deixa ver... ah, como poderia? – Esteban Maroto, não é esse o nome?- Calhorda! Espumava Andy. Foi você quem colocou os explosivos no carro dos calouros. A missão era compartimentada e não havia condições para eu compreender as conseqüências ao entregar-lhes o Dossiê Esteban.- Uma operação conjunta eu diria. Precisou o velho. Nascida da multisciplinaridade em que seus serviços foram de suma importância.- Velho filho da puta! ... faça-me o favor de morrer logo,seu puto. Pragueja o belicoso e chulo Andrew.- Se Deus quiser, filho... se Deus quiser. Sussura o velho asiático, mirando o afastar-se do jovem desolado. Durante longos minutos sustentou o olhar que fitara a operação inversa do amigo que peregrinava de volta à meca ocidental- o Fast food – local sagrado onde líquida e seguramente começava a América. Suspensa no ar, a fragrância anis do “ghalian” represava-se junto ao lustre pingente do obsoleto salão persa como se testemunhasse a inutilidade daquele reencontro.

Concluído em 20 de Fevereiro de 2007.

Dedicado a Gillo Pontecorvo¹ com admiração e afeto.
¹(La Battaglia di Algeri / The Battle of Algiers - 1966, Continental)

6.7.09

undo design press release



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23.2.09

Peter Witkin para Colorir


A era democrática tem por orígem do gosto, constantes formais que -hegemonicamente - apontaram para um polo emissor do belo: o Renascimento. A presença do grotesco na arte choca por propor um contrafluxo ao que era regra. Provavelmente Goya tenha rolado a pedra. Se hoje a "transgressão do belo" representa um franco desafio aos nossos condicionamentos perceptivos, a arte por sua vez, pode não necessariamente " parecer com arte". A retina dos medias esbarra nessas tendências, geralmente incorporadas à cultura em detrimento à resistência que encontram nos seus cidadãos de bem. Com efeito, numa sociedade incapaz de superar suas contradições, o estímulo visual analgésico surge refrescante à cada dia e perpetua-se à medida que fabrica nossos hábitos de consumo. Posso não gostar das inflexões de Joel Witkin, porém me incomoda mais a idéia de que um gosto particular, por mais requintado que queira ser, venha a legitimar o instrumento crítico capaz de problematizar o procedimento artístico . A cultura produziu a neurose, Witkin arranjou-lhe significados sensíveis.

11.2.09

Da Contra-Informação ao Pensamento Único Neo Liberal : Conceitos de Crítica da Indústria da Mídia

Este Artigo foi originalmente publicado na revista Comunicação & Política / Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Vol. 25, nº 3. Rio de Janeiro: CEBELA, set.-dez. 2007. Corresponde às páginas 25 à 47.

P.S.: Dê um clique no título para acessar o site Estratégia & Análise do sociólogo Bruno Lima Rocha.

5.2.09

Energia Tentacular Irresistível ( E. T. I )


Eureka! Oxalá a ilustra aí responda satisfatoriamente às críticas recebidas sobre meus experimentos gráficos em série - (risos) - que aludem ao parcelamento corporal e a aniquilação física . Mantendo as constantes formais ( traço linear , a relação claro/escuro, etecétera ) acentuei as linhas de conflito para este novo trabalho, afim de que a valoração tonal não viesse à " enriquecer " o apelo emocional da imagem, levando a retina para o lado negro da força. Temo que sobre as instâncias psíquicas do homem por onde venho deslizando os pincéis, esse trabalho fale pouco . Mergulhado em águas mais rasas o cidadão acima revela o artista contemporaneo que estabeleceu uma dança fluídica e irrevogável com os novos tentáculos comunicacionais . Se a mitologia em questão é binaria( na ), faz-se conveniente a consolidação das conexões instrumentais nos domínios de Net( uno ). Criemos pois, tentáculos midiáticos tenazes para que nossa produção intelectual abraçe novos sentidos, uma ética superior ao mercantilismo e uma política criativa que favoreça a noção de cardume. Que o produto cultural adquira ventosas capazes de aderir visceralmente à um suporte moderno e ao mesmo tempo democrático, que queira instigar um debate franco reinventando sua própria função social.
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O Molusco Artesão Armazena Caracteres em Bolhas de Ar
seria um título formidavelmente pretensioso para seguir alimentando meus estupendos críticos. Blurp !

27.1.09

um trabalho braçal



dando continuidade à pauta H.Q. , resolvi homenagear mestres como Suehiro Maruo ( ver post anterior ), Shintaro Kago, Seiichi Hayashi entre tantos, desenhando uma cena que aborda o submundo das satisfações grotescas do Eroguro. À quem possa interessar, utilizei para o lay-out ( lápis ) grafite Faber Castel 0.5 , nanquim Higgins e pincéis Tigre pelo de marta 181/2 e 6 para a arte-final . Os tons de cinza ficaram por conta da " photoshopeira véia ". Na verdade, minha relação com horror nos quadrinhos remonta aos idos anos 80 na companhia da revista Kripta e da Mestres do Terror de Rodolfo Zalla e Colonesse. Sob influência daquele grafismo estonteante rabisquei minhas primeiras histórias numa dispensa mal-iluminada lá de casa, que eu batizara " Mãe Solteira" produções editoriais. hahaha. O trabalho acima é um reencontro com essas imagens pungentes que me tiravam o sono. Na época rolava uma " caça às bruxas " dos corpos docentes para com os quadrinhos. Minha mãe, então pedagoga puritana ransava : - Já tá denovo
com essas " caveiragens " guri !
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.Sessão Nostalgia
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ainda nos delirantes anos 80 a gurizada ligava a telinha nas tardes ociosas de férias regadas à Toddy e Supercau para ver dali saltar um escatológico Dom Drácula do grande Tesuka na rede Manchete. O vampirão voava e arrancava à la Ozzy Osbourne, a cabeça de duas ou tres ratazanas providenciando para que jorrasse sangue para todo lado. Seu arque inimigo Prof. Van Helsing sofria de hérnia de disco e se mocosava no caixão do príncipe das trevas para
deixar-lhe de souvenir sua deposição intestinal. E olha que eu to falando de um período pré- abertura política.
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P.S. : para todos os efeitos vou restringir as visitas á esse post. Vai que a coroa acesse... horns up !

21.1.09

Encaixotando Suehiro


"sua obra tem beleza demais, uma técnica impecável e tamanha complexidade de idéias que é impossível classificá-lo simplesmente como um pornógrafo talentoso ou um 'gorehound ".
(
Nathan Bennett , jornalista da Dazed e Confused )


Considero inegável que a obra de Suehiro Maruo surja como uma HQ de sondagem psicológica aonde a façanha discursiva subsista na idéia de transversalizar seus limites pictórico-espaciais. Tamanha densidade conflitual das idéias dispostas em sua linguagem “ Gore ” lhe rendeu comparações à Georges Bataille, Marquês de Sade e William Burroughs .Não obstante, acharia prudente uma investigação sobre as inflexões do artista, que fosse capaz de reconhecer sua própria trajetória como um dos vetores decisivos para a compreensão das suas proposições de autor. Anteriormente à toda essa ebulição em torno de si, Suehiro tivera por inúmeras vezes, seus trabalhos descartados pelo mercado editorial dos mangás - que saia de cena - movimenta uma fatia substancial do produto interno Japonês. Acredito na premissa da inadaptabilidade do autor à uma indústria de entretenimento que prime por uma cultura visual " anestésica " e não se interesse por MOSTRAR algo, senão por VENDER algo. É exatamente aí que Suehiro descobre seu nicho. Ao contrastar proporções do grotesco e do fantasmal com uma paleta nada menos que sublime, apresenta-se como alternativa à todo um modus operandi num franco desafio à nossos hábitos perceptivos. Seu mundo é o mundo da satisfação dos desejos em estado selvagem, despojado daquelas operações de controle desempenhadas pelo super-ego¹. Paradoxalmente, o supra-racional e o amoral encontram-se à irromper como fenômeno narrativo sugerindo a representação do desgoverno, das carnificinas e dos genocídios não ficcionais, à passo que a fluidez onírica dos cenários plenos de simbolismos gráficos , aponte para a situação surreal do objeto de arte por onde discursa o inconsciente. No patamar Nietzscheniano, a articulação estabelecida com o universo de Maruo, reside seguramente nos aforismos do filólogo² acerca da obssolescência do homem ( o Eu individual Vs. O Eu social ) . No tocante à cultura pop, livros como “ O Vampiro Que Ri “ e “ Eroguro “ serão provavelmente computados como marco-inaugural do gênero angura³ dentro dos quadrinhos, estando em plena disseminação de seus núcleos de identidade e consumo em países como Alemanha e Estados Unidos .


1. : Ver teoria da Sublimação e Recalque. 2.: Nietzsche era formado em letras. 3.: Termo empregado para designar o mangá underground.